Papo de garota
escrevendo no espelho
Quando comecei a escrever meu primeiro livro — Depois daquela viagem* —, eml994, estava fazendo um tratamento de tuberculose renal (uma doença opor¬tunista que tive decorrente da AIDS). Fraca e debilita¬da, quase não podia sair de casa, meus amigos vinham me visitar nos fins de semana. Eu adorava. Fazíamos a maior farra, e eles sempre me cobrando que eu escre¬vesse logo o livro. Mas chegava segunda-feira, cada um tinha que seguir com a sua vida: faculdade, está¬gio, trabalho... E eu ficava sozinha, num tédio total, às vezes com vontade de desistir de tudo.escrevendo no espelho
Numa dessas segundas-feiras, sem vontade de sair da cama, olhando para a estante, certo livro começou a piscar para mim: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. Como todo mundo, eu já o tinha lido na adoles¬cência — conta a história, de um garoto de 19 anos que fica tetraplégico e repensa a sua vida. Tirei o livro da estante e o li todinho novamente. Me dei conta de que eu estava fazendo o mesmo, escrevendo a minha his¬tória e repensando a minha vida. Mas o que me angus¬tiava era não saber se eu teria tempo de acabar e se valeria a pena. O Marcelo também terminava o seu livro dizendo que não sabia se era melhor ele estar vivo ou ter morrido. Aquilo me intrigou. Peguei o tele¬fone, liguei para a minha amiga Priscila, sua fã incon¬dicional.
— E aí, Pri, o que aconteceu com aquele tal de Marcelo?
Ele está superbem. Escreveu outros livros, o Blecaute, o Bala na Agulha... E tem uma coluna às segundas-feiras na Folha de S. Paulo.
Puxa, ele devia estar bem mesmo. E o meu proble¬ma de segunda-feira resolvido. Um jornal atrás da por¬ta que conseguia me tirar da cama. Aquele tal de Mar¬celo, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo, aque¬la coluna que falava de tudo: de que a vida podia ser tão complicada a ponto de dar vontade de chorar ou simples de nos fazer rir.
Em 1997, acabei de escrever o meu livro. Publicar e assumir toda a minha história era a questão agora. Ves¬ti minha cara-de-pau e fui atrás do Marcelo. Apareci do nada e pus meu texto em suas mãos.
— Também escrevi um livro autobiográfico, eu disse.
Ele ficou meio sem saber o que dizer, mas na ver¬dade eu só queria perguntar uma coisa:
— Alguma vez você se arrependeu de ter escrito e publicado a sua história em Feliz Ano Velho?
Ele pensou um pouco...
— Não, Valéria, não me arrependi.
Alguns meses depois publiquei meu livro, que foi um sucesso. Por conta disso, fui convidada para ser colunista da revista Atrevida onde pude desenvolver meu trabalho de "escrevente". O próprio Marcelo me orientou quanto aos caminhos que eu deveria percor¬rer e continua me orientando sempre que lhe peço socorro. E hoje sou eu que estou aqui escrevendo esta crônica para ele. Como essa vida é cheia de surpresas. Obrigada por tudo, Marcelo.
* Valéria Piassa Polizzi. Depois daquela viagem. São Paulo, Ática, 1998.
Escrever por prazer
Assim que comecei a escrever, escrevia por prazer. Ainda pequena, com dificuldade em segurar o lápis, ia juntando letra com letra até formar palavras. Ah, e como elas eram divertidas! Pronunciadas, tinham som, lidas e pensadas, produziam imagens. Com o tempo, esse meu jogo foi se expandindo e eu podia montar frases e orações. Estas diziam coisas, passavam mensagens, co¬municavam.
Minha mãe conta que o primeiro bilhete que escre¬vi foi para o meu pai. Nós havíamos brigado e eu fica¬ra de castigo. Injuriada, peguei lápis, papel e escrevi com minhas letrinhas, ainda malformadas, todos os pa¬lavrões que sabia! É óbvio que nenhuma professora me ensinara aquilo. Mas eu já dominava o jogo e, pelo som, sabia fazer nascer as letras, as palavras e... por que não os palavrões?
Quando meu pai pegou o papel, ficou estupefato. Que atrevimento! Mas também, puxa, sua filhinha já estava escrevendo. E que palavrões! A briga acabou ali mesmo. É claro que depois ele me explicou: "Menina bonitinha não deveria escrever coisas tão feias". Que escrevesse então coisas belas!
Daí para frente, não parei mais. Vieram as redações no colégio, e a arte de inventar histórias, descrever os lugares, contar os fatos...
Uma verdadeira viagem!
Nos meus diários, podia guardar as boas lembran¬ças do desgaste do tempo, conversar comigo mesma. Com cartas, chegar mais perto de alguém. Cada pala¬vra um sentido, cada sentido um sentimento. Cada sentimento uma emoção. Ah! Aquilo tudo era uma brinca¬deira infinita!
Depois veio um livro, em que eu ousei falar de coisas até então proibidas. Descobri ali a força das palavras, que, além de criarem, podem derrubar con¬ceitos, libertar e fazer crescer.
"Valéria, você escreve com o coração", me disse uma pessoa um dia. E é verdade. Quando escrevo, vem primeiro a vontade de agradar, de chegar perto, de fazer um carinho tocando com as palavras. Quando escrevo, vejo você, quem quer que seja, esse alguém que lê. E assim, como que por magia, acabamos juntos num lugar sem espaço nem tempo. Pois, ainda que eu estivesse morta, quando você lesse esse texto, se daria a união: escritor e leitor. União no universo mental, o universo de dentro. União no universo de todos nós, o de fora.
A certa altura, começaram a me falar das tais técni¬cas e métodos. "Para ser uma verdadeira escritora, pre¬cisa ralar muito... escrever é 10% inspiração e 90% transpiração...". E então eu passava horas quebrando a minha cabeça para no fim conseguir um parágrafo ape¬nas. E, ainda por cima, duro e seco como uma pedra! Cheguei a pegar textos de autores que gosto, como o conto Herbarium, da Lygia Fagundes Telles, e ler só com o intuito de descobrir a tal da técnica. Mas não dá. Ele é tão envolvente que logo na segunda frase só vejo os personagens, os lugares... E aí não tem mais jeito, sou totalmente levada pela emoção. Depois me descabelo, me desespero, pois nunca consigo a tal da técnica!
Até que um dia uma sábia amiga, percebendo mi¬nha aflição, colocou em minhas mãos o livro Entre a ciência e a sapiência, de Rubens Alves, um escritor, educador, psicanalista e doutor em Filosofia. E vejam só! Numa das crônicas, ele conta a história de uma jovem que, ao fazer sua tese científica, lhe entregou um formulário em que perguntava qual era o método e a teoria usados por ele para escrever suas histórias. Sabem como respondeu? "O pintor espanhol Picasso dizia: 'Eu não procuro. Eu encontro'. As histórias são assim. A gente vai vagabundando, fazendo nada, com uma coceira no pensador. De repente a história chega. Sem teoria, sem método. É só ir para casa e escrever." E foi isso que acabei de fazer. Sentei e escrevi. Acho que o Rubens tem razão, não existe um método para se ter idéias boas. O melhor mesmo é continuar escre¬vendo por prazer. Pelo meu e pelo seu!
Escrever por prazer
Assim que comecei a escrever, escrevia por prazer. Ainda pequena, com dificuldade em segurar o lápis, ia juntando letra com letra até formar palavras. Ah, e como elas eram divertidas! Pronunciadas, tinham som, lidas e pensadas, produziam imagens. Com o tempo, esse meu jogo foi se expandindo e eu podia montar frases e orações. Estas diziam coisas, passavam mensagens, co¬municavam.
Minha mãe conta que o primeiro bilhete que escre¬vi foi para o meu pai. Nós havíamos brigado e eu fica¬ra de castigo. Injuriada, peguei lápis, papel e escrevi com minhas letrinhas, ainda malformadas, todos os pa¬lavrões que sabia! É óbvio que nenhuma professora me ensinara aquilo. Mas eu já dominava o jogo e, pelo som, sabia fazer nascer as letras, as palavras e... por que não os palavrões?
Quando meu pai pegou o papel, ficou estupefato. Que atrevimento! Mas também, puxa, sua filhinha já estava escrevendo. E que palavrões! A briga acabou ali mesmo. É claro que depois ele me explicou: "Menina bonitinha não deveria escrever coisas tão feias". Que escrevesse então coisas belas!
Daí para frente, não parei mais. Vieram as redações no colégio, e a arte de inventar histórias, descrever os lugares, contar os fatos...
Uma verdadeira viagem!
Nos meus diários, podia guardar as boas lembran¬ças do desgaste do tempo, conversar comigo mesma. Com cartas, chegar mais perto de alguém. Cada pala¬vra um sentido, cada sentido um sentimento. Cada sentimento uma emoção. Ah! Aquilo tudo era uma brinca¬deira infinita!
Depois veio um livro, em que eu ousei falar de coisas até então proibidas. Descobri ali a força das palavras, que, além de criarem, podem derrubar con¬ceitos, libertar e fazer crescer.
"Valéria, você escreve com o coração", me disse uma pessoa um dia. E é verdade. Quando escrevo, vem primeiro a vontade de agradar, de chegar perto, de fazer um carinho tocando com as palavras. Quando escrevo, vejo você, quem quer que seja, esse alguém que lê. E assim, como que por magia, acabamos juntos num lugar sem espaço nem tempo. Pois, ainda que eu estivesse morta, quando você lesse esse texto, se daria a união: escritor e leitor. União no universo mental, o universo de dentro. União no universo de todos nós, o de fora.
A certa altura, começaram a me falar das tais técni¬cas e métodos. "Para ser uma verdadeira escritora, pre¬cisa ralar muito... escrever é 10% inspiração e 90% transpiração...". E então eu passava horas quebrando a minha cabeça para no fim conseguir um parágrafo ape¬nas. E, ainda por cima, duro e seco como uma pedra! Cheguei a pegar textos de autores que gosto, como o conto Herbarium, da Lygia Fagundes Telles, e ler só com o intuito de descobrir a tal da técnica. Mas não dá. Ele é tão envolvente que logo na segunda frase só vejo os personagens, os lugares... E aí não tem mais jeito, sou totalmente levada pela emoção. Depois me descabelo, me desespero, pois nunca consigo a tal da técnica!
Até que um dia uma sábia amiga, percebendo mi¬nha aflição, colocou em minhas mãos o livro Entre a ciência e a sapiência, de Rubens Alves, um escritor, educador, psicanalista e doutor em Filosofia. E vejam só! Numa das crônicas, ele conta a história de uma jovem que, ao fazer sua tese científica, lhe entregou um formulário em que perguntava qual era o método e a teoria usados por ele para escrever suas histórias. Sabem como respondeu? "O pintor espanhol Picasso dizia: 'Eu não procuro. Eu encontro'. As histórias são assim. A gente vai vagabundando, fazendo nada, com uma coceira no pensador. De repente a história chega. Sem teoria, sem método. É só ir para casa e escrever." E foi isso que acabei de fazer. Sentei e escrevi. Acho que o Rubens tem razão, não existe um método para se ter idéias boas. O melhor mesmo é continuar escre¬vendo por prazer. Pelo meu e pelo seu!
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Regrinhas:
- Quer criticar o blog ? avontade mais sem palavrões e ofensas Ok!?
Obrigada pela colaboração!