quinta-feira, março 18, 2010


O apartamento

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*crônica do livro papo de garotas*

Olhando o apartamento, assim, pareceu-lhe um cor¬po que havia visto certa vez, sobre uma maça num corredor de um hospital. Estava coberto até a testa por um lençol branco, deixando à mostra somente uma parte dos cabelos grisalhos. Um dos braços pendia para fora, solto no ar. Um corpo vazio, morto, sem alma, com mais nada que lembrasse a última pessoa que ali vivera. Exatamente como aquele apartamento agora: nenhuma cortina, nenhum sofá, tampouco quadros. Somente paredes brancas e vazias,
Ela se sentou no chão da sala. Estava só. E, sem sair dali, fechou os olhos e percorreu todo o apartamento. O quarto, o banheiro, a cozinha, a área de serviço, a sala... Lembrou-se da primeira vez em que o vira, pronto para ser alugado. Assim também sem mobília, porém cheio de sonhos. A vista da janela da frente — para o lago no parque — era maravilhosa. E no começo, ain¬da que só tivessem um colchão no chão, bastava para os dois irem juntos apreciar a vista pela janela da sala, as cores do pôr-do-sol, o alaranjado cor-de-rosa des¬cendo sobre o verde do parque ao som dos pássaros... Eram jovens e estavam apaixonados. Era tudo o que se podia querer.
Com o tempo chegaram os móveis. Um sofá, a cama de casal, um quadro. A cozinha pequena e moderna, mais uma mesa, outra cadeira. Era como ir jogando sementes sobre a terra. Sonhos e mais sonhos. Como uma semente na barriga. Um ninho de amor?
De repente, contudo, as portas começaram a bater. As paredes já não ouviam as doces conversas e risadas e, sim, gritos e discussões. O colchão parecia ter se transformado em pedra. E o lago do parque, quem di¬ria, havia se tornado lamacento e obscuro. As folhas das árvores não mais refletiam o brilho do sol. Secas, caíam. As árvores, nuas. E as sementes, abortadas?
Ela olhou mais uma vez o apartamento vazio. Tudo que ali um dia chegara havia ido embora de novo. Nenhum quadro, nenhum vaso, nenhuma cadeira. Nada. Nada que lembrasse como eram as pessoas que ali mo¬ravam. Exatamente como aquele corpo vazio de alma, morto, na maça do hospital.
E ela se levantou e saiu pela porta da frente, para nunca mais voltar. E, ainda que naquele momento não tivesse mais esperança alguma, alguém saberia por ela que existiriam outras primaveras, outras sementes, ou¬tros sonhos, outros amores. Porque a vida é um ciclo. E continuaria mesmo que longe dali.

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Regrinhas:
- Quer criticar o blog ? avontade mais sem palavrões e ofensas Ok!?

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